O Herdeiro Legítimo
Um israelita rico, que vivia em sua bela propriedade, para além de Ascalon,
muito longe de Jerusalém, tinha um filho único, que mandou para a Cidade
Santa a fim de se educar. Durante a ausência do jovem, o pai adoeceu
repentinamente. Vendo a morte aproximar-se, fez o seu testamento pelo qual
instituiu como seu universal herdeiro a um escravo ascalonita, de sua
confiança, com a cláusula que a seu filho seria permitido escolher da rica
propriedade uma coisa, e uma coisa só, que ele quisesse. Assim que o seu
senhor e dono morreu, o escravo, exultando de alegria, por se sentir
proprietário das casas, terras e rebanhos, correu a Jerusalém para informar
o filho do que se tinha passado, e mostrar-lhe o testamento.
O jovem israelita ficou
possuído do maior desgosto ao ouvir essa notícia inesperada, rasgou o fato,
pôs cinzas na cabeça e chorou a morte do pai, que amava ternamente, e cuja
memória ainda respeitava. Quando os primeiros arrebatamentos de sua dor
tinham passado e os dias de luto acabaram, o jovem encarou seriamente a
situação em que se encontrava. Nascido na opulência e criado na expectativa
de receber, pela morte do pai, as propriedades a que tinha direito, viu ou
imaginou ver as suas esperanças perdidas e as suas perspectivas malogradas.
Nesse estado de
espírito, foi ter com o seu professor, um rabi afamado pela sua piedade e
sabedoria, deu-lhe a conhecer a causa de sua aflição e fê-lo ler o
testamento; e na amargura do seu desgosto atreveu-se a desabafar os seus
pensamentos — que o pai, fazendo tal testamento, e dispondo tão
singularmente de seus bens, não tinha mostrado bom senso nem amizade pelo
filho.
— Não digas nada contra teu pai, meu jovem amigo — declarou o piedoso rabi —
teu pai era ao mesmo tempo um homem dotado de grande sabedoria e a ti,
especialmente, de uma dedicação sem limites. A prova mais evidente é este
admirável testamento.
— Este testamento! — exclamou o jovem torcendo os lábios em expressão de
amargura. — Este deplorável testamento! Convencido estou, ó rabi!, de que
não falas agora com o discernimento de um homem esclarecido. Praticou meu
pai uma injustiça. Não vejo sabedoria em conferir os seus bens a um escravo,
nem amizade em despojar seu filho único dos seus direitos legítimos, de
acordo com o Torah.
— Teu pai nada disso fez! — rebateu com segurança o Mestre — Mas, como pai
justo e afetuoso, garantiu-te, nos termos deste testamento a propriedade
plena de tudo, casas, terras e rebanhos, se tiveres o bom senso de
interpretar com acerto as cláusulas testamentárias.
— Como? Como? — perguntou o jovem, com o maior espanto. — Como é isso?
Cabe-me a propriedade integral? Na verdade, não compreendo!
— Escuta, então — acudiu o rabi. — Escuta, meu filho, e terás muito para
admirar a prudência de teu pai. E no coração do prudente repousa a
sabedoria. Quando viu teu bondoso pai a morte aproximar-se, e certo de que
teria de seguir o caminho que todos seguem mais cedo ou mais tarde, pensou
de si para consigo: “Hei de morrer; meu filho está longe demais para tomar
posse imediata de minha propriedade; os meus escravos, assim que se
certificarem de minha morte, saquearão a minha casa e, para evitar serem
descobertos, hão de esconder a minha morte a meu querido filho e, assim,
privá-lo até da triste consolação de chorar por mim”.
— Para evitar que a propriedade sofresse dano — prosseguiu o rabi — teve teu
saudoso pai uma idéia genial. Deixou todos os bens a um escravo, que,
decerto, teria o maior interesse em tomar conta de tudo e zelar pela
segurança de todos os bens. Para evitar que o escravo, homem de sua
confiança, conservasse, em sigilo, a morte do amo, estabeleceu a condição
que poderias escolher qualquer coisa da propriedade. O escravo, pensou ele,
para assegurar o seu, aparentemente legítimo direito, não deixaria de te
informar, como de fato ele o fez, do que acontecera.
— Mas, então — teimou o jovem, um pouco impaciente — que proveito tirarei de
tudo isso? Qual é a vantagem que poderá resultar para mim? O escravo
ascalonita não me restituirá, com certeza, a propriedade de que tão
injustamente fui despojado! Ficará, como determinou meu pai, dono das terras
e dos rebanhos.
O judicioso rabi respondeu com sere¬nidade:
— Vejo que a Sabedoria reside apenas nos espíritos amadurecidos pela idade.
Sabes que tudo quanto um escravo possui pertence ao seu dono legítimo? E teu
pai não te deu a faculdade de escolher, dos seus bens, isto é, da herança,
qualquer coisa que quisesses? O que te impede de escolher aquele próprio
escravo ascalonita como parte que te pertence? E possuindo-o, terás, de
acordo com a Lei, pleno direito à propriedade toda. Sem dúvida era esta a
intenção de teu pai.
O jovem israelita, admirando a prudência e a sabedoria do pai, tanto como a
argúcia e a ciência do seu Mestre, aprovou a idéia. Nos termos do
testamento, e na presença de um juiz, escolheu o escravo como sua parte e
tomou posse imediata de toda a herança. Depois do que, concedeu liberdade ao
escravo, que foi, além disso, agraciado com rico presente. (...)
Autor: Malba Tahan - A gato do cheique