O Quinto Preceito
Kumba Jataka
Uma
vez, enquanto o Buda estava vivendo no Monastério Jetavana em Savatthi, Visakha,
uma rica e leiga devota budista, foi
convidada por 500 mulheres que ela conhecia, a participar na celebração de um
festival na cidade.
-
“Este é um festival de bebidas,” disse Visakha. “Eu não bebo.”
-
“Tudo bem,” disseram as mulheres, “vá em frente e faça suas oferendas ao
Buda, nós aproveitaremos o festival.”
Na
manhã seguinte, Visakha serviu ao Buda e à Ordem dos bhikkhus em sua casa e
fez grandes oferendas dos quatros requisitos.
[i]
Naquela
tarde, ela prosseguiu, e foi à Jetavana para oferecer incenso e belas flores ao
Buda e para ouvir os ensinamentos. Embora estivessem quase bêbadas, as outras
mulheres a acompanharam. Até mesmo
ao portão do Monastério, elas continuaram bebendo.
Quando Visakha entrou no hall, ela curvou-se reverenciosamente ao Buda e
sentou respeitosamente num dos lados.
Suas
500 companheiras, entretanto, se esqueceram de adequar-se ao local. Elas
pareciam, de fato, não perceberem onde estavam. Mesmo em frente ao Buda algumas
delas dançavam, algumas cantavam, algumas tropeçavam
e outras brigavam.
A
fim de chamar a atenção das mulheres, o Buda emitiu um brilho azul escuro de
suas sobrancelhas, e subitamente tudo tornou-se escuro. As mulheres ficaram
aterrorizadas com medo de morrer e
instantaneamente ficaram sóbrias. O Buda então desapareceu de seu assento e pôs-se
de pé no topo do Monte Meru. Dos caracóis de cabelos brancos entre suas
sobrancelhas ele emitiu um raio de luz tão esplendoroso
como se mil luas e sóis estivessem nascendo. “Por que estão rindo e
se divertindo,” ele reclamou, “vocês que estão sempre consumindo-se e
rodeadas pela escuridão? Por que não procuram luz?”
As
palavras de Buda tocaram todas as 500 mulheres, e
suas mentes - agora receptivas - se
tornaram um canal de penetração.
O Buda então retornou e sentou-se em sua câmara. Visakha
reverenciou-o mais uma vez e
perguntou, “Venerável senhor, qual é a origem deste costume de bebida alcoólica,
que destrói a modéstia e o senso de vergonha de uma pessoa?”
Em
resposta à pergunta de Visakha, o Buda revelou esta história de um passado
distante.
Há
muito, muito tempo atrás, quando Brahmadatta reinava em Baranasi, um caçador
chamado Sura foi de sua cidade natal em Kasi, aos Himalaias, à procura de
divertimento. Naquela remota selva
havia uma única árvore cujo tronco cresceu até a
altura de um homem com seus braços levantados acima de sua cabeça. Até
aquele ponto, três galhos se espalhavam, formando uma cavidade mais ou menos do
tamanho de um grande barril de água. Sempre que chovia, a cavidade se enchia de
água. Ao redor da árvore crescia uma árvore de ameixas amargas, uma árvore
de ameixas ácidas, e uma videira de pimentas. As frutas maduras das ameixeiras
e as pimentas da videira caiam diretamente dentro da cavidade. Próximo, havia
uma pequena área de terra de arroz não cultivado.
Papagaios arrancavam as cabeças do arroz e sentavam-se na árvore para
comê-las. Algumas dessas sementes caíam na água. Com o calor do sol, o líquido
existente na cavidade fermentava e tornava-se de um vermelho cor de sangue. Nas
estações quentes, revoadas de pássaros sedentos iam lá para beber.
Tornando-se repentinamente embriagados, eles rodavam descontroladamente
para cima, apenas para caírem bêbados aos pés da árvore. Após dormirem por
um curto período de tempo, eles acordavam e voavam,
gorjeando divertidamente. O mesmo acontecia aos macacos e outros animais
que costumam subir em árvores.
O
caçador observou tudo isto e ficou curioso, “O que haverá na cavidade
daquela árvore? Não pode ser veneno, porque se fosse, os pássaros e os
animais morreriam.” Ele bebeu um pouco do líquido e ficou embriagado da mesma
forma como eles. Por ter bebido, ele sentiu um forte desejo de comer carne.
Acendeu uma pequena fogueira,
quebrou os pescoços de algumas das perdizes, aves domésticas,
e outras criaturas caídas inconscientes aos pés da árvore, e os assou
sobre o carvão. Ele gesticulava embriagadamente com uma mão enquanto enchia a
boca com a outra.
Enquanto
bebia e comia, lembrou-se de um ermitão chamado Varuna que vivia alí perto.
Desejando dividir sua descoberta com o ermitão, Sura encheu um tubo de bambu
com o licor, embrulhou alguns pedaços da carne assada, e saiu para a choça do
ermitão. Logo que lá chegou, ele ofereceu ao ermitão um pouco da bebida, e
ambos comeram e beberam com satisfação.

O
caçador e o ermitão deram-se conta de que esta bebida poderia ser a maneira de
fazerem fortuna. Eles despejaram a bebida dentro de grandes tubos de bambu,
colocaram-nos como varas atravessadas em seus ombros e os carregaram até Kasi.
Da primeira fronteira em que chegaram, eles enviaram uma mensagem ao rei,
dizendo que os fazedores de bebidas haviam chegado. Quando foram convocados,
eles pegaram o álcool e o ofereceram ao Rei.
O
rei tomou dois ou três drinques e ficou embriagado. Após alguns dias, ele
havia
consumido tudo que os dois homens tinham carregado e perguntou se havia
algum mais.
-
“Sim, senhor,” eles responderam.
-
“Onde?” perguntou o rei.
-
“Nos Himalaias”.
-
“Vão e tragam-na,” ordenou o rei.
Sura
e Varuna voltaram à floresta, mas eles logo perceberam como era trabalhoso
retornar às montanhas toda vez que precisassem de mais bebida, assim, eles
tomaram nota de todos os ingredientes e juntaram tudo que precisavam, de forma
que eles estivessem aptos a preparar a bebida na cidade. Os cidadãos começaram
a beber o licor, esqueceram de seus trabalhos, e tornaram-se pobres. A cidade
logo parecia uma cidade fantasma.
A
esta altura, os dois fazedores de bebidas partiram e levaram seus negócios para
Baranasi, de onde enviaram uma mensagem ao rei. Lá, também, o rei
intimou-os e ofereceu-lhes suporte. Como o hábito de beber se espalhou,
os trabalhos comuns se deterioraram, e Baranasi caiu em decadência
da mesma forma que Kasi havia caído.
Sura
e Varuna foram em seguida para Saketa, e,
após
abandonarem Saketa, prosseguiram para Savatthi.
Naquela
época, o rei de Savatthi era chamado Sabbamitta.
Ele deu as boas vindas aos dois mercadores e perguntou o que eles
queriam. Eles solicitaram grandes quantidades dos principais ingredientes e
quinhentos enormes jarras. Após tudo acertado, eles colocaram a mistura nas
jarras e amarraram um gato em cada jarro para afastar os ratos. Conforme a
bebida fermentava, ela começou a transbordar. Os gatos lambiam felizes a
potente bebida que escorria lado abaixo, ficando completamente embriagados, e
deitaram-se para dormir. Os ratos vieram e mordiscavam nas suas orelhas, narizes e
rabos. Os homens do rei ficaram chocados e relataram ao rei que os gatos
amarrados aos jarros tinham morrido por beberem o licor que escapava.
“Por
certo esses homens devem estar preparando veneno!” o rei concluiu, e
imediatamente ordenou que ambos fossem decapitados. Sura e Varuna foram
executados e suas últimas palavras foram, “Senhor, isto é licor!
É delicioso!”
Após
a execução dos mercadores, o rei ordenou que as jarras fossem quebradas.
Por outro lado, entretanto, os efeitos do álcool havia passado e os
gatos estavam brincando muito felizes. Os guardas relataram isto ao rei.
“Se
fosse veneno,” disse o rei, “os gatos teriam morrido. Pode ser mesmo
delicioso.
Vamos
bebe-lo.”
Ordenou
que a cidade fosse decorada e que um pavilhão fosse erguido no pátio. Ele
tomou seu assento num trono real sob a proteção de uma sombrinha branca,
circundado pelos seus ministros, pronto para beber.
Naquele
momento, Sakka, o rei dos deuses, estava vistoriando o mundo e começou a
pensar, “Quem está respeitosamente cuidando de seus pais? Quem está se
conduzindo bem em pensamento, palavra, e ação?"
Quando
ele viu o rei sentado em seu pavilhão real, pronto para beber a mistura, ele
pensou, “Se o Rei Sabbamitta beber aquilo, o mundo inteiro perecerá. Vou me
assegurar de que ele não a beba.”
Sakkha
instantaneamente disfarçou-se de um brahman e, carregando uma jarra cheia de
licor na palma de sua mão, apareceu de pé erguido no ar em frente do rei.
“Compre esta jarra! Compre esta jarra!” ele gritava.
O
rei Sabbamitta o viu e perguntou, “De onde você vem, brahman? Quem é você?
Que jarra é esta que você tem?”
“Ouça!"
Sakka respondeu. “Esta jarra não contém manteiga, óleo, melado, ou mel.
Atente aos inumeráveis vícios que esta jarra contém. Quem quer que beba isto,
pobre tolo ignorante, perderá o controle de si mesmo até tropeçar no chão
liso e cair numa vala ou poço. Sob sua influência, ele comerá coisas que, em
sã consciência, nunca imaginou pudesse comer. Por favor compre-a. Esta é a
pior das jarras e está à venda! O conteúdo desta jarra distrairá o espírito
de um homem até fazê-lo comportar-se como um bruto, dando ao seu inimigo a
alegria de rir dele. Isto fará com que ele cante e dance estupidamente em
frente à uma assembléia. Por favor compre este maravilhoso licor pela obscena
gaiatice que trará. Mesmo o mais tímido perderá a modéstia quando beber
desta jarra. O mais acanhado dos homens pode esquecer do problema de estar
vestido e pode desavergonhadamente correr nú ao redor da cidade. Quando estiver
cansado, ele descansará alegremente e feliz em qualquer lugar, sem se importar
com o perigo ou a decência. Tal é a natureza desta bebida. Por favor compre-a.
Esta é a pior das jarras e está à venda. Quando alguém bebe dela, perde o
controle de seu corpo, cambaleando como se não pudesse ficar em pé,
tremulando, aos trancos, e se sacudindo como uma marionete conduzida pela mão
de outro. Compre minha jarra. Ela está cheia de vinho. O homem que beber desta
jarra é presa fácil de todo perigo porque ele perde seus sentidos. Pode
queimar até morrer em sua própria cama, tropeçar num monte de chacais, cair
num poço, reduzindo-se à servidão ou penúria – não existe infortúnio a
que, bebendo-se dela, não se seja levado. Tendo absorvido isto, os homens podem
cair sem sentidos na estrada, sujos
pelos seus próprios vômitos e lambidos por cachorros. Uma mulher pode
tornar-se tão intoxicada que amarrará seus amados pais à uma árvore,
insultará seu esposo, e na sua cegueira pode até abusar ou mesmo abandonar sua
única criança. Tal é a mercadoria contida nesta jarra. Quando um homem bebe
desta jarra, ele pode acreditar que todo o mundo é dele e que ele não deve
respeito a ninguém. Compre esta jarra. Está cheia até a borda com a mais
forte bebida. Viciadas por esta bebida, famílias inteiras da classe mais alta
desperdiçarão suas fortunas e arruinarão seus nomes. Compre esta jarra,
senhor. Ela está à venda. Nesta jarra existe um líquido que faz língua e pés
perderem o controle. Cria risadas e
choros irracionais. Embaça a visão e enfraquece a mente. Torna um homem
desprezível. O ato de bebê-lo conduz a conflitos. Amigos terão cotendas e
chegarão a vias de fato. Até mesmo os antigos deuses foram suscetíveis e
perderam seus céus por causa da bebida.[ii]
Compre esta jarra e prove o vinho.
Por causa desta bebida, mentiras são ditas com prazer, e ações proibidas são
cometidas com alegria. Falsa coragem conduzirá ao perigo, e amigos serão traídos.
O homem que bebe desta bebida tentará qualquer proeza, sem dar-se conta de que
está se condenando ao inferno. Tente esta bebida, senhor. Compre minha jarra.
Aquele que beber esta mistura pecará em pensamento, palavra, e ação. Ele verá
coisas boas como más e coisas más como boas. Até mesmo a pessoa mais modesta
agirá indecentemente quando bêbada. O homem mais sábio balbuciará bobagens.
Compre este maravilhoso líquido e torne-se viciado. Você crescerá habituado a
maus comportamentos, à mentira, ao abuso, à imundície, e à desonra. Quando
completamente bêbados, os homens são como bois caídos no solo,
desmoronando-se e estendendo-se em pilhas. Nenhum poder humano pode competir com
o poder venenoso do licor. Compre minha jarra.
Para
encurtar, bebendo-se isto, cada virtude será destruída. A vergonha será
banida, a boa conduta corroída, e a boa reputação aniquilada. Ela irá
corromper e enevoar a mente. Se puder permitir-se beber deste intoxicante licor,
senhor, compre minha jarra.”
Quando
o rei ouviu isto, ele entendeu a miséria que poderia ser causada pela bebida
alcoólica. Imensamente feliz por ter sido poupado do perigo, ele desejou expressar
sua gratidão.
“Brahman,”
ele clamou, “você sobrepujou até mesmo minha mãe e meu pai cuidando de mim!
Em gratidão por suas excelentes palavras, permita-me dar-lhe cinco vilas a sua
escolha, cem mulheres para servi-lo, setecentas vacas, e dez carruagens puxadas
por cavalos de puro sangue. Você está sendo um grande mestre.”
“Como
chefe de trinta e três deuses,” Sakka respondeu,
revelando sua identidade, “ eu não tenho necessidade de coisa alguma.
Você pode conservar suas vilas, empregados, e rebanho. Aproveite sua deliciosa
comida e contente-se com os doces. Delicie-se nas verdades que preguei para você.
Desta maneira você estará livre de culpa neste mundo e obterá no próximo um
glorioso renascimento celestial.”
Com
estas palavras, Sakka retornou a sua própria residência.
O
Rei Sabbamitta prometeu solenemente abster-se do álcool e ordenou que as jarras
fossem espatifadas. Daquele dia em diante, ele guardou os preceitos e
generosamente distribuiu donativos. Ele viveu uma boa vida e realmente renasceu
no céu.
Mais
tarde, entretanto, o hábito de beber bebidas alcoólicas espalhou-se através
da Índia, e muitas pessoas foram afetadas.
O
Buda terminou aqui sua lição e identificou o Princípio:
“Naquele tempo
Ananda era
o rei, e eu próprio era Sakka.”
[i]
- Mantos, comida, alojamento, e remédios.
[ii]
- Os asuras, os antecessores dos
demônios, perderam seus céus porque Sakka foi
capaz de expulsá-los quando eles estavam por demais embriagados para
lutar com
ele.
A tradução deste texto é
uma preciosa colaboração de Suely Dray com revisão de Teresinha Medeiros dos Santos -
Felppondd@aol.com
e com ilustração de Sandro Neto
Ribeiro contato@maisbelashistoriasbudistas.com
Referências
bibliográficas
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