Reflexões Sobre a Guerra

Por Daisaku Ikeda

Eu tenho um espelho que sempre mantenho comigo. Realmente, não é nada mais do que um pedaço de vidro quebrado do tamanho de um palmo. Um pedaço de espelho quebrado, o tipo de objeto que provavelmente pode ser encontrado em qualquer lata de lixo. Mas, para mim, pode ser qualquer coisa, menos lixo. Quando a minha mãe se casou, ela o trouxe como parte do seu enxoval, uma penteadeira com um belo espelho embutido. Quantas vezes a sua jovem face de noiva não foi refletida neste espelho. Entretanto, após vinte anos, o espelho se quebrou e meu irmão mais velho, Kiichi e eu, separamos os cacos e ficamos com os dois pedaços maiores.

Pouco depois, a guerra teve início. Meus quatro irmãos mais velhos, um por um, foram convocados para a batalha, alguns foram para a China, outros para o Sudeste Asiático. Eu senti uma grande repulsa contra os esforços em prol da guerra. Meus quatro irmãos - que estavam no auge de suas vidas, prontos para trabalharem e contribuírem para nossa família - foram tirados de nós, em sucessão, por um simples pedaço de papel – o comunicado de convocação.

Eu nunca esquecerei o desgosto e raiva com que Kiichi, ao deixar a China, descrevia as atrocidades desumanas que ele presenciou serem cometidas pelo Exército Japonês. O Japão estava errado, ele dizia, sentindo pena do povo chinês. Assim, eu cultivei um profundo ódio pela guerra, sua crueldade, estupidez e inutilidade.  Tragicamente, a Guerra do Pacífico presenciou o crescente e selvagem nacionalismo japonês em toda a Ásia. 

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Daisaku Ikeda é pacifista, escritor, filósofo, fotógrafo e poeta.  Também conhecido como "Embaixador da Paz", é presidente da Soka Gakkai Internacional (SGI), uma ONG, com base budista,   filiada às Nações Unidas, que atua nas áreas da cultura, educação, paz, meio-ambiente, desarmamento nuclear e apoio a refugiados de guerra.

Os japoneses se tornaram emissários do inferno, trazendo a dor e o sofrimento irreparável tanto para os nossos vizinhos asiáticos, como para o próprio povo japonês. Nós nunca devemos esquecer as terríveis crueldades que foram infringidas sobre o belo país das Filipinas. Eu ofereço as minhas sinceras desculpas pela incalculável miséria causada pelos militares japoneses daquela época.

Minha mãe, cujos quatro filhos mais velhos foram tirados dela, tentava não mostrar sua dor, mas ela pareceu ter envelhecido repentinamente.

Então, os ataques aéreos tiveram início sobre Tóquio e em pouco tempo, se tornou algo diário. Eu mantive meu pedaço de espelho sempre comigo, guardando-o carinhosamente dentro da minha camisa, ao me esquivar dos bombardeios que caiam sobre nós.

A guerra lançou seu espectro sobre tudo em nossas vidas. Finalmente, o fim que todos nós já sabíamos chegou: a derrota. Em 15 de agosto, a guerra – que foi levantada e mantida pela égide do Imperador – agora terminava com a voz do Imperador nas rádios, clamando o povo japonês a suportar o insuportável. Aos dezessete anos, meu coração estava dilacerado entre a esperança e a ansiedade.

As pessoas somente sentaram em completo torpor. Mas, logo, nós percebemos que os céus estavam tranqüilos pela primeira vez, em muitos meses. Um senso de alívio pareceu se espalhar. Ao menos nesta noite, nós poderíamos acender as luzes. Que brilho! Eu pensei – que maravilha é a paz. Nós todos estávamos aliviados, mas ninguém chegou e disse: “Eu estou feliz que perdemos. Graças que a guerra acabou”.

O único desejo da minha mãe, sua única esperança, era o seguro retorno dos seus filhos. Ela estava particularmente preocupada em relação a Kiichi. Nós não tínhamos recebido nenhuma notícia dele desde que ele escreveu dizendo ter deixado a China em direção ao Sudeste Asiático. De tempos em tempos, ela nós dizia que havia visto Kiichi em seus sonhos, e que ele havia lhe dito que estaria retornando em breve.

Eventualmente, cerca de dois anos após o término da guerra e meus outros irmãos terem retornado, nós recebemos uma notificação de que Kiichi havia sido morto na Birmânia (atual Myanmar). Neste momento, eu pensei no pedaço de espelho, pois sabia que ele carregava no bolso da frente do seu uniforme. Eu pude imaginá-lo, tirando o espelho do seu bolso e mirando sua face com barba a fazer, pensando continuamente em sua mãe que permanecia em casa.

Quando a minha mãe recebeu a notícia da morte de Kiichi, ela virou-se de costas para nós, trêmula pela perda. Esta foi a sua maior perda, a mais profunda tristeza que ela experimentou em sua vida. Eu senti, nas profundezas da minha vida, a tragédia e a inutilidade da guerra. A guerra, que produz tamanho sofrimento para uma mãe inocente de qualquer crime, é absolutamente maligna.

A guerra somente traz o sofrimento e miséria para as pessoas comuns, as famílias e mães. Sempre são as pessoas desconhecidas e sem nome que sofrem e lamentam em meio a lama e as chamas. Na guerra, a vida humana é usada como um meio para se alcançar um determinado fim, vidas que podem ser sacrificadas por motivos estratégicos. Existe um ditado que diz que é preciso 20 anos de paz para se construir um homem, mas somente 20 segundos para destruí-lo. Esta é a razão para que sejamos sempre contra a guerra – não nos engajando, nem permitindo que outros participem nesta barbárie. Todas as rivalidades e conflitos devem ser resolvidos, não através do poder, mas pela sabedoria.

Nos incertos e turbulentos tempos após a derrota japonesa, eu deixei minha casa e me mudei para um alojamento. O quarto era pequeno, mal mobiliado e feio, mas por sorte, eu tinha o pedaço de espelho quebrado comigo. Todas as manhãs, antes de ir para o serviço, eu o usava para me barbear e pentear meu cabelo.

Em 1952, quando me casei, minha esposa trouxe consigo uma nova penteadeira, e a partir daquela data, eu olhava minha face neste novo espelho. Um dia, eu encontrei a minha esposa com o pedaço do velho espelho em suas mãos e um olhar confuso em seu rosto.

Quando eu percebi que o espelho estava prestes a ser jogado na cesta do lixo, caso eu não falasse nada, eu lhe disse sobre toda a história relacionada a ele. De alguma forma, ela achou uma pequena e elegante caixinha e guardou o pedaço de espelho dentro dela. O espelho continua guardado nesta caixa até os dias de hoje.

Todas as vezes que olho para o pedaço de espelho quebrado, ele me comunica com os árduos dias da minha juventude que são difíceis de descrever, com as orações da minha mãe e com o triste destino do meu irmão mais velho. E eu continuarei a mirá-lo enquanto eu viver. (por Daisaku Ikeda)

Fonte: Mirror Weekly – Semanário publicado na República das Filipinas 

Preciosa Colaboração de Charles Chigusa
e-mail: chigusacharles@hotmail.com

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