O rei Fértil e a rainha Sivali  
Capítulo
III
[ Abrindo mão do Poder] 


 Esta história aconteceu muito tempo atrás, numa época em que as pessoas viviam vidas muito mais longas, mesmo até 10.000 anos. E aconteceu justamente que o Rei Fértil já governava por mais ou menos uns 7.000 anos, quando o jardineiro real lhe trouxe uma excepcional e linda coleção de flores e frutos. Ele gostou tanto do presente que quis ver o jardim pessoalmente. O jardineiro então decorou e arrumou o jardim e convidou o Rei a visitá-lo.

O rei montou no elefante real e foi seguido pela corte inteira e por muitas pessoas comuns de Mithila. Quando ele entrou através do portão do jardim viu duas lindas mangueiras. Uma delas estava repleta de mangas perfeitamente amadurecidas, enquanto a outra estava completamente sem fruta. Ele tirou uma das frutas e deliciou-se com o seu doce sabor. Decidiu comer mais delas quando retornasse.

Quando as pessoas viram que o rei havia comido a primeira fruta, entenderam que elas também poderiam comê-las, e em bem pouco tempo todas as mangas haviam sido comidas. Algumas pessoas inclusive quebraram os galhinhos e os desfolharam procurando por mais frutas.

 Quando o Rei Fértil retornou, viu que a árvore havia sido quase destruída e que seus galhos foram desfolhados. Ao mesmo tempo a árvore estéril continuava tão linda como antes, com suas folhas verdes brilhando sob a luz do sol.

O rei perguntou a seus ministros, “ O que aconteceu aqui?” Eles explicaram, “Uma vez que Vossa Majestade comeu a primeira fruta, as pessoas se sentiram livres para devorar o resto. Procurando por mais frutas eles inclusive destruíram as folhas e os galhinhos. A árvore estéril foi poupada e continua linda, desde que não tem frutos.”

 Isto entristeceu o rei. Ele pensou, “Esta árvore frutífera foi destruída, porém a estéril foi poupada. Minha monarquia é como a árvore frutífera – quanto mais poder e posses, maior o medo de perdê-los. A vida santa de um simples monge é como a árvore estéril – abrir mão de poder e de posses conduz à libertação do medo.”

Então o Grande Ser decidiu abrir mão de sua fortuna e poder, deixar a glória da realeza para trás, abandonar a constante ocupação de proteger sua posição. Em vez disto ele decidiu empenhar-se em viver a vida pura de um monge. Somente assim ele poderia descobrir profunda e duradoura felicidade, a qual poderia ser espalhada para outros também.

Retornou à cidade. Postando-se próximo ao portão do palácio, ele chamou o comandante do exército e disse, “De agora em diante, ninguém mais verá minha face exceto um servente me trazendo comida e um servente me trazendo água e pasta de dentes. Você e os ministros reinarão de acordo com a velha lei. Eu irei viver como um simples monge no andar de cima do palácio.”

Após ele ter vivido algum tempo desta forma, o povo começou a surpreender-se com a mudança ocorrida nele. Um dia, uma multidão de pessoas aglomerou-se no pátio do palácio e elas disseram: “Nosso rei não é mais como antes. Não mais quer ver as danças ou ouvir as músicas, ou assistir as brigas de bois e as dos elefantes, ou ir ao seu agradável jardim para ver os cisnes nos tanques. Por que ele não fala conosco?” Então, perguntaram aos serventes que levavam comida e água ao rei, “Ele lhes diz alguma coisa?”

Os serventes responderam, “Ele está tentando manter sua mente longe de pensar em coisas desejáveis, de modo que ela se torne sossegada e saudável como as mentes de seus velhos amigos, os Budas Silenciosos. Ele está tentando desenvolver a pureza daqueles que nada possuem exceto boas qualidades. Numa ocasião até o ouvimos dizer bem alto, “Penso apenas nos Budas Silenciosos, livres da perseguição de prazeres comuns. A liberdade deles os tornam realmente felizes – quem irá levar-me aonde eles vivem?”

Por somente uns quatro meses o Rei Fértil ficou vivendo no útimo andar do palácio tentando tornar-se um simples monge. Nessa altura ele entendeu que havia muitas distrações no lindo reino de Mithila. Ele as via como apenas pompas externas que o mantinham distante de encontrar paz interna e Verdade. Então ele decidiu, de uma vez por todas, abrir mão de tudo e tornar-se um monge da floresta e ir viver nas Montanhas Himalayas. Ele tinha os robes amarelos e a cuia que um monge lhe trouxera. Então ordenou ao barbeiro real para lhe raspar a cabeça e a barba. E, na manha seguinte bem cedo, ele começou a descer a escada real.

Enquanto isso, a Rainha Sivali já havia ouvido sobre seus planos. Ela juntou 700 das mais belas rainhas do harém real e as levou escada acima. Elas passaram pelo Rei Fértil na escada mas não o reconheceram vestido como um monge. Quando chegaram ao último andar, a Rainha Sivali encontrou-o vazio, com apenas os cabelos e barbas cortados ainda lá. Imediatamente ela entendeu que o monge desconhecido deveria ser seu esposo.

Todas as 701 rainhas desceram as escadas correndo para o pátio do palácio. Alí elas seguiram o rei-tornado-monge. Como a Rainha Sivali as haviam instruído, todas elas soltaram seus cabelos e tentaram seduzir o rei para ficar. Gritaram e gritaram, suplicando-lhe, “Por que está fazendo isto?”

Todas as pessoas da cidade, então, ficaram muito transtornadas e começaram a segui-lo. Gritavam e choravam, “Ouvimos falar que nosso rei se tornou um simples monge. Como poderemos jamais encontrar um governante tão bom e justo como ele novamente?”

As 700 rainhas do harém, usando todos seus lindos véus e lindas jóias, chorando e implorando, não conseguiram mudar a mente do Ser Iluminado, pois ele havia tomado sua decisão e estava determinado a mantê-la. Ele havia desistido da cuia de ouro consagrada do estado, a qual lhe passou o poder da família real,  e, em vez disso, agora carregava apenas a cuia feita de barro de um humilde monge, um aspirante da Verdade.

Finalmente a Rainha Sivali parou de chorar. Ela viu que as lindas rainhas do harém não haviam conseguido parar seu esposo. Então ela foi até o comandante do exército e lhe disse para atear fogo entre a favela de casas e edifícios abandonados que estavam no caminho do rei. Disse-lhe também para fazer fogueiras de gravetos e folhas molhados em diferentes áreas da cidade, para fazer muita fumaça.

Quando isto foi feito ela abaixou-se ao chão aos pés do rei e implorou, “Meu Senhor, toda Mathila está em chamas! Os belos edifícios com seus valiosos trabalhos de arte, preciosos metais e jóias, e tesouros estão sendo todos destruídos. Volte, oh! Rei, e salve sua riqueza antes que seja muito tarde.”

Porém, o Ser Iluminado respondeu, “Todas estas coisas pertencem aos outros. Eu nada tenho, portanto não estou com medo de perder qualquer coisa. E perder coisas não vai me causar tristeza. Minha mente está em paz.”

Então, ele deixou a cidade através do portão norte ainda seguido por todas as 701 rainhas. Obedecendo as instruções da Rainha Sivali, elas mostraram a ele vilas sendo roubadas e destruídas. Havia homens armados atacando, enquanto outros pareciam feridos e mortos. Mas o que parecia ser sangue era realmente apenas tinta vermelha, e os mortos fingindo-se mortos. O rei sabia que aquilo era um truque uma vez que não havia realmente ladrões nem saqueadores no reino, primeiro que tudo.

Após caminhar ainda mais adiante, o rei parou e perguntou a seus ministros, “a que pertence este reino?” Eles responderam, “Ao senhor, oh Rei.”  Então o rei desenhou uma linha cruzando a estrada e disse, “Pois então, qualquer um que cruze esta linha que seja punido.” Ninguém, incluindo a Rainha Sivali, se atreveu a cruzar a linha. Porém, quando ela viu que o rei continuou andando estrada adiante da linha marcada, dando-lhe as costas, ela se sentiu arrasada. Acometida de grande pesar, bateu no próprio peito e, resoluta, cruzou a linha.  A multidão, vendo isto, perdeu o medo e a seguiu. A Rainha Sivali manteve o exército com ela, enquando a multidão inteira continuou seguindo o Rei Fruta Fértil. Ele continuou por muitas milhas, em direção aos Himalaias no norte.

Entrementes, nos Himalaias, numa caverna dourada vivia um monge muito sábio. Através de seus grandes esforços mentais ele tinha conseguido poderes místicos que somente homens altamente santificados os possuem. Após meditação num maravilhoso estado mediúnico por uma semana inteira, subitamente gritou, “Que felicidade! Oh, que felicidade!” Então, usando seus poderes especiais, ele olhou por sobre toda a India para ver se havia alguém que estivesse sinceramente buscando encontrar a mesma felicidade, livre de todas as distrações do mundo. Ele viu apenas o Rei Fruta Fértil, o Bodhisattva que um dia tornar-se-ia o Buda. Viu que ele havia desistido de todos os seus poderes materiais. Afim de ajudá-lo e encorajá-lo, o monge magicamente voou através do ar e flutuou na frente do rei.

Ele perguntou ao Rei Fruta Fértil, “Por que toda esta multidão com toda sua gritaria o está seguindo?” O rei respondeu, “Eu abri mão do poder do meu reinado e deixei o mundo para um melhor. Embora os tenha deixado bem, meus antigos súditos me seguem. Esta é a razão.”

O monge santo disse, “Não esteja tão seguro, oh monge. Você ainda não conseguiu deixar o mundo, pois há ainda obstáculos dentro de você. Existem os ‘Três Impedimentos’ – o desejo por prazeres dos olhos, dos sons e outros assim; o desejo de prejudicar os outros; a preguiça; preocupações; e dúvidas desmedidas. Portanto, pratique as Perfeições, seja paciente, e não pense, nem muito nem pouco sobre você mesmo.” Finalizou dizendo, “Eu o abençoou – que os deuses, sabedoria e a Verdade o protejam no seu caminho.” Dito isto, ele desapareceu e reapareceu de volta em sua caverna dourada.

Por causa deste conselho, o Rei Fruta Fértil tornou-se menos preocupado com a multidão que o seguia, entendendo que os maiores obstáculos, ou impedimentos, estão dentro da própria pessoa.

Nesse meio tempo a Rainha Sivali prostou-se aos seus pés mais uma vez e implorou, “Oh  rei, escute os lamentos dos seus súditos. Antes de deixá-los para uma melhor, conforte-os, coroando seu filho para reinar em seu lugar.”

Ele respondeu, “Já deixei meus súditos, amigos, parentes e meu país atrás. Não tenha medo, pois os nobres de Mithila treinaram o Príncipe Longa Vida muito bem, e eles irão proteger voces dois.

Mas ela continuou, “Oh rei, tornando-se um monge voce vai deixar-me sem esposo. Que vergonha! Que vou fazer?” Ele respondeu, “Apenas seja cuidadosa para ensinar ao príncipe que não tenha perniciosos pensamentos, palavras ou ações. Do contrário você trará penosos resultados para você própria.”

Ao pôr do sol, a rainha acampou enquanto o rei entrou na floresta para dormir ao pé de uma árvore. No dia seguinte ela continuou seguindo-o com seu exército. Chegaram a uma pequena cidade.

Aconteceu que, uma homem na cidade havia justamente comprado uma finíssima peça de carne do açougueiro e após cozinhá-la a colocou sobre uma mesa para esfriar, quando um cão errante a viu e a agarrou, correndo em seguida. O homem seguiu o cão até bem longe em direção ao portão sul da cidade. Alí, ele desistiu pois estava muito cansado para continuar.

O cão fugitivo cruzou o caminho do Rei Fruta Fértil e da Rainha Sivali. Assustado por eles, o cão deixou cair a carne na estrada. O rei percebeu que era um bom pedaço de carne e que o dono real dela era desconhecido. Então ele limpou a carne, a colocou na cuia, e a comeu.

A Rainha Sivali, acostumada que era de comer as delícias servidas no palácio, ficou enojada e disse, “ Uma pessoa de classe elevada jamais comeria a comida de um cachorro, até mesmo se estivesse a ponto de morrer. Comer tal nojenta comida mostra que você é completamente desprezível!” Porém, ele respondeu, “É apenas sua própria vaidade que impede você de ver o valor desta carne. Se obtida honestamente, toda comida é pura e saudável!”

Ao continuarem se aproximando da cidade, o Rei Fruta Fértil pensou, “A Rainha Sivali ainda está me seguindo e isto é mau para um monge. As pessoas dizem, “Ele abriu mão de seu reinado, mas não consegue escapar de sua esposa! Eu preciso encontrar um jeito de ensiná-la que ela deve ir-se.”

Justo naquele momento eles encontram algumas crianças brincando, e dentre elas havia uma menina com um bracelete em um dos seus pulsos e dois no outro. Imaginando que ela era uma garota esperta, o rei perguntou-lhe, “Minha criança, por que um dos seus braços faz barulho com seu movimento,  e o outro não?” A menina respondeu, “Oh monge, é porque num braço há dois braceletes e no outro há apenas um. Onde há dois, é o segundo que ressoa contra o primeiro e faz o  barulho. O braço com apenas um bracelete permanece silencioso. Então, se quer ser feliz, você deve aprender a estar contente quando sozinho.”

O Bodhisattva disse para a rainha, “Voce está ouvindo a sabedoria desta criança? Como um monge eu me sinto envergonhado de permitir que você esteja comigo na frente dela. Portanto, você segue seu caminho, eu sigo o meu. Não somos mais marido e mulher – adeus!”

A rainha concordou e eles tomaram caminhos diferentes. Mas ela novamente tomou-se de profundo pesar e voltou a seguir o rei. Entraram juntos na cidade, onde ele coletou donativos de comida.  Chegaram à casa de um fabricante de flechas. Assistiram a ele umedecer a flecha quente, e a esticá-la, enquanto posicionava a seta com apenas um olho aberto. O rei perguntou-lhe, “Amigo, para fazer a flecha perfeitamente reta, por que você a olha com um dos olhos abertos e o outro fechado?” O fabricante de flechas respondeu, “Com os dois olhos abertos, a amplitude do segundo olho distrai a visão. Apenas se concentrar-me em um olho posso realmente ver a linha reta da flecha. Então, se quer ser feliz, você deve aprender a estar contente quando sozinho.” O rei coletou donativos de comida e então eles deixaram a cidade.

O rei disse à rainha, “Voce escutou a mesma sabedoria novamente daquele artesão? Como um monge eu me sinto envergonhado de permitir que você esteja comigo na frente dele. Portanto, você segue seu caminho, eu sigo o meu. Não somos mais marido e mulher – adeus!” Porém, ela ainda o seguiu.

Então, ele cortou um talo de grama alta e disse à Rainha Sivali, “ Da mesma forma que  dois pedaços partidos desta grama não podem ser juntados novamente, eu também não me juntarei mais a você na cama! Nós dois jamais iremos estar juntos novamente.

Ouvindo isto a rainha quase enloqueceu. Golpeou-se com ambas as mãos até cair ao chão completamente inconsciente. Vendo isto, o Bodhisattva rapidamente deixou a estrada e desapareceu dentro da mata.

Primeiro ele abriu mão do poder e da posição de rei. Agora ele abriu mão do poder e desejo de um esposo. Afinal, ele estava livre para seguir o caminho de busca da Verdade.

Ele caminhou para os Himalaias e em apenas uma semana já estava apto a desenvolver poderes especiais. Nunca mais retornou ao mundo comum.

Nesse meio tempo os ministros reais, que os seguiram à distância, encontraram a rainha caída no chão. Borifaram água em seu rosto e ela acordou. Imediatamente perguntou, “Onde está meu marido, o rei?” Eles responderam que não sabiam e ela ordenou que eles o procurassem, mas eles, por certo, não o encontraram.

Quando a Rainha Sivali se recuperou de seu medo e pesar, ela compreendeu que não mais sentia raiva, ciúmes ou desejo de vingança contra o monge. Em vez disto, passou a admirá-lo, mais ainda do que no dia em que eles se encontraram pela primeira vez, quando ela lhe deu a mão e o levou ao trono.

Quatro monumentos foram erigidos por sua ordem, em honra ao Rei Fruta Fértil: um no lugar onde eles conversaram com o flutuante santo homem Narada; outro no lugar onde eles comeram uma boa carne deixada alí pelo cão; outro onde ele fez perguntas à menina; e o quarto, onde encontraram o fabricante de flexas.

Ao lado das duas mangueiras no jardim real, ela corou o Príncipe Vida Longa como o novo rei. Junto ao seu exército e à multidão de seguidores, todos retornaram para a cidade de Mithila.

À despeito de tudo a Rainha Sivali aprendeu também que pelo fato de ter seguido e finalmente perdido seu marido, ela igualmente sentiu o gosto da liberdade!

A sábia mulher abriu mão de suas tarefas reais e se retirou para meditar no jardim próximo às duas mangueiras. Devido ao seu grande esforço ela alcançou um elevado estado mental que a levou a renascer num mundo celeste.

                        É mais fácil ganhar o poder do que perdê-lo.


A tradução deste texto é uma preciosa colaboração de 
Teresinha Medeiros dos Santos - Felppondd@aol.com 
Com ilustração de Sandro Neto Ribeiro contato@maisbelashistoriasbudistas.com 

Referências  bibliográficas


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