Até algumas semanas atrás, eu fazia
parte das 450 mil pessoas que residiam no estado de Vargas. Durante estes quatro anos,
pude criar um belo laço de amizade com as pessoas do local. Em setembro de 1999, eu mudei
para um prédio localizado em frente a praia de Tanaguarenas, juntamente com outras três
famílias. Como trabalho na área de computação (Internet), estabeleci um escritório
dentro da minha residência. Eu nunca poderia imaginar os acontecimentos do mês de
dezembro, um fenômeno que transformou a minha vida, tanto no plano físico, como no
espiritual.
Eu acredito que cada um de nós,
defronta com alguma dificuldade que é difícil de se superar, um aspecto de nossas vidas
na qual não evoluímos ou cujo avanço é extremamente lento. Há alguns anos atrás,
através da prática do budismo, eu reconheci que a minha vida emocional era o aspecto que
estava mais debilitado em mim, o tesouro do coração.
Como foi noticiado, as chuvas
começaram de forma incessante em La Guaira. No dia 15 de dezembro, eu - juntamente com
outros companheiros tentamos convencer um membro a abandonar sua casa para evitar
um acidente.
A meia-noite, enquanto via o
noticiário na televisão, a energia elétrica foi cortada e o telefone ficou mudo.
Entretanto, eu pensei que era algo passageiro, e decidi cochilar na sala. As duas da
madrugada, o zelador do prédio bateu na minha porta, aconselhando-me a mover o carro do
estacionamento, pois este estava inundando. Assim, eu desci para o estacionamento e mudei
meu veículo de posição. Ao mesmo tempo, uma onda de apreensão despertou em mim, como
se algo estranho estivesse acontecendo. Acreditando que a situação não fosse melhorar
até o amanhecer, liguei através do celular para o sr. Regalado, diretor da SGI-Venezuela
para avisar os meus pais e dizer que tudo estava bem.
Na manhã, as chuvas se intensificaram
e algumas famílias desabrigadas começaram a buscar refúgio no prédio, pois suas casas
foram carregadas pelas águas. Logo, comecei a recitar o daimoku com todas as minhas
forças. Alguns minutos depois, um rapaz, nu e cheio de escoriações apareceu na piscina
do prédio. Ele e o seu avô tinham sido levados pela chuva em direção ao mar, quando a
sua casa desabou. Seu avô havia desaparecido.
Neste momento, um alerta despertou em
mim. Eu percebi que a minha vida estava em perigo. Assim, nas próximas 24 horas, recitei
o daimoku, observei através da bancada do meu apartamento o nível das águas e
incentivei as pessoas ao meu redor enquanto avaliava o grau de destruição em nosso
prédio.
Na manhã do dia 16, uma imensa
avalanche de lama, rochas, carros, seres humanos e árvores começou a fluir em torno do
edifício em direção a praia. Eu fiquei atordoado e recitava o daimoku como louco. Eu
olhava uma massa, com cerca de sete metros de altura, indo em direção ao mar com uma
força estrondosa. Os portões do nosso prédio estavam sendo empurrados, assim como a
base de todos os edifícios da área. Os carros do estacionamento foram sendo levados em
direção a piscina. Eu olhei o meu veículo sendo engolfado pelas águas, enquanto estava
preso por entre algumas árvores.
Defrontando com esta catastrófe,
somente sentei diante do Gohonzon e recitava o daimoku para manter a calma, pois a base do
edifício poderia romper a qualquer momento e desabar toda a estrutura. Nestes momentos eu
refleti: "Se este é o momento da minha morte, significa que a minha fé foi forte e
correta ? Eu possuo o estado de Buda que possa transformar o meu destino e dos meus
ancestrais ? ou eu era um simples mortal comum que não tinha outra opção, a não ser
morrer de uma terrível forma.
Eu me lembrei da seguinte passagem das
escrituras de Nitiren Daishonin "A Abertura dos Olhos": "Eu e meus
discípulos, mesmo que ocorram vários obstáculos, desde que não se crie dúvida no
coração, atingiremos naturalmente o estado de Buda. Não duvidem dos benefícios do
Sutra de Lótus, mesmo que não haja a proteção dos céus. Não lamentem a ausência de
segurança e tranquilidade na vida presente. Embora tenha ensinado dia e noite a meus
discípulos, todos, criando a dúvida, abandonaram a fé. O que é costumeiro no tolo é
esquecer nas horas cruciais o que prometera nas horas normais.".
O meu momento crucial havia chegado. Eu
lutei para recitar o daimoku de forma que a minha oração penetrasse em minha vida, ao
mesmo tempo que protegesse o meu prédio e os edifícios vizinhos. Eu desejei celebrar o
Ano Novo. A imagem dos meus pais vinham em minha mente. Eu me lembrei que os meus pais já
chegaram a perder dois filhos e que eu, como um Buda, não poderia provocar este tipo de
sofrimento para eles. Do fundo do meu ser, surgiu um profundo amor filial, uma intensa
calma e um vibrante senso de missão. Eu gostaria de viver para dizer a todos o quanto eu
os amava.
Enquanto isto, o mar de lama avançava
com toda a sua força, chegando a encobrir dois andares do prédio. Neste instante, eu me
senti responsável pela minha vida e por todos aqueles que estavam abrigados no local. Eu
me levantei e convenci a todos que este era o momento de deixarmos o local, pois as vigas
do edifício poderiam ruir a qualquer momento. Buscamos o melhor caminho para chegarmos a
praia, mas o rio de lama era extremamente perigoso. Enquanto recitava o daimoku, vi o meu
carro, atolado em meio a algumas árvores como o instrumento certo e o utilizamos como uma
ponte até os muros que circundavam o edifício. Em poucos minutos, todos estavam em
segurança na praia. Há dois dias atrás, o zelador havia me aconselhado a mudar a
posição do carro e devido a isto, estávamos a salvo.
Depois de sobreviver a esta
catástrofe, estou morando juntamente com os meus pais, após 15 anos de ausência. Meu
coração se encheu de alegria porque tive a chance de abraçá-los e finalmente
evidenciar das profundezas do meu ser, o amor que sentia por eles. Hoje, eu não posso
dizer que perdi tudo, ao contrário, eu obtive a minha própria identidade, pois pude
reconhecer quem eu sou, o valor da minha vida, da minha família e do seu apreço e afeto.
Assim, a minha decisão é continuar a viver sem restrições como um verdadeiro
discípulo do presidente Ikeda.