Nasci faz quarenta anos
em Varazze, um pequeno povoado da Ligúria. Segundo dizem “um pequeno e
encantador ângulo do mundo”, mesmo não concordando muito. Tampouco
concordava com minha mãe, que afirmava que ficando ali poderia realizar uma
grande parte de minhas experiências de vida. Após uma dezena de anos
transcorrida bancando o palhaço, o escoteiro e ir à escola por obrigação,
comecei a fugir cada vez que podia. Eram os anos do colégio e me dedicava a
todo tipo de manifestações de protesto e a fazer magníficas viagens de moto
à Inglaterra, Marrocos, Turquia...
Durante dez anos vivi
esta dimensão de liberdade e descobrimento, compartilhando-a com um amigo,
que rapidamente se converte em um grande amor. Foi uma história forte,
passional, um pouco como aquela entre Verlaine e Rimbaud e todos aqueles
“poetas malditos”, os que terminaram mal por causa de tanto viver. Também a
mim, também a nós, nos tocou viver assim. Ele morre num acidente de moto e
foi o primeiro momento de desespero em minha vida. “Ou morro, ou devo
realizar algo grande, diferente para poder viver”, dizia-me.
Pouco a pouco, fui
conhecendo um ator sul-americano, Pepe Robledo. Nessa época, freqüentava em
Savona uma escola de teatro, começando assim a cultivar meu sonho de
antanho. Decidi fugir novamente, esta vez seguindo-o com seu grupo, com
destino à Dinamarca. Assim abandonei a carreira de Economia, quase no final.
Durante três anos lutei
duramente com um árduo trabalho de aprendizagem teatral, para poder
continuar vivendo e fugindo daquela grande dor. Quase o tinha conseguido
quando outra dor aparece: lesões num olho, de improviso, irreversíveis.
Estava em Wuppertal, Alemanha. Desde então vejo as coisas de um modo
diferente. Mas cada nova dor incluía um novo horizonte e desta vez encontrei
aquela que seria minha mestra: a grande Pina Bausch, a coreógrafa de dança
moderna. Trabalhar com ela foi uma experiência maravilhosa.
Mudando de assunto:
durante uma turnê pela América do Sul fui picado por um mosquito. Malária.
Tenho que voltar a Genova para curar-me. Uma vez fora do hospital, me
chamam: “O Sr. é HIV positivo”. Caio num turbilhão de angústia e desespero
total. Meu sistema imunológico já estava bastante destruído.
Carluccio, um amigo, já
tinha me falado do Budismo, mas não tinha me convencido. Toda essa história
de benefícios me parecia completamente improvável. Isso de obter
transformações orando. Jamais poderia praticar uma religião assim. Mas o
medo e o desespero começaram a fazer seu próprio trabalho. “Experimenta pelo
menos 15 dias”, repetia minha amiga Anna. Estávamos em Módena, em dezembro
de 89.
Foram 15 dias cheios de
“coisas estranhas”, como por exemplo, chegar no Correio, quando já estava
fechado e conseguir que abrissem. Um estado vital diferente, que me faz
renovar por 15 dias, o pacto que tinha com Anna e o Budismo. E senti pela
primeira vez recitando Daimoku, surgir dentro de mim uma pequena luz, uma
força que me abria algo dentro.
Depois, tudo tornava a
fechar-se e recaía no desespero daquele que sente que pode morrer hoje ou
amanhã. Mas continuava a recitar Daimoku.
Passaram os primeiros
anos em Módena, com prática intensa, atividades, orientações que me deram
coragem para ter fé.
Em 92, em Milano,
encontro com o presidente Ikeda. Estava na primeira fila. Suas palavras tão
cheias de sabedoria e simplicidade, seus olhos cheios de humanidade,
penetraram na minha vida. Pratiquei com o pensamento constante de curar-me e
de viver. Praticando surgiram também os outros sofrimentos da minha vida: um
trabalho de teatro, ainda que de qualidade, mas não reconhecido na
sociedade; um grande sofrimento de amor, que certamente era a verdadeira
causa de minha doença.
Era o ano 93 e na Ligúria
dava seminários de teatro para jovens de toda a Itália, muitos dos quais
começaram a praticar mais tarde o Budismo. Mas a saúde não melhorava. As
defesas imunológicas eram sempre muito baixas e o temor às infecções era
constante. Porém nunca parei de praticar. Tenho seguido todas as terapias
possíveis gastando todo o dinheiro que tinha, mas o único ponto que
permanecia constante era a prática. Muito Daimoku, atividade e chakubuku.
Não obstante, a angústia progredia e sem perceber, me encontrei
completamente à sua mercê. Angústia, constante medo de morrer.
Nessa época morre
Marilena, querida amiga que trabalhava na minha companhia. Também ela tinha
o mesmo problema que eu. Morre de uma infecção, em poucos dias. Nesse
momento estava fazendo um espetáculo, Henrique V, de Shakespeare. É a
história de um homem que leva adiante um combate impossível. Em um momento
diz: “É verdade, estamos em perigo. Mas justamente por isso, maior ainda
deve ser nossa coragem. Existe sempre algo de bem ainda nas piores coisas;
pertence aos homens saber extrair-lo”.
Era minha história, minha
luta, não era só Shakespeare.
Em 94 cheguei a emagrecer
muitíssimo, era constantemente invadido pela febre, calores fortíssimos em
todo o corpo, nas costas...
Estava aterrorizado.
Recitava horas de Daimoku
por dia. Em meio de tanta dor física certas vezes aparecia uma alegria
inacreditável. Esse ano montei “A raiva”, dedicada a Passolini, um
espetáculo desesperado, mas cheio de amor pela vida. Em um determinado
momento, Pepe me dizia uma frase de Chaplin: “Pensa na força que faz crescer
as árvores, que faz tremer a terra, que faz girar o universo: essa mesma
força está dentro de você”. E eu ria, forte, com toda minha vida.
Ainda hoje, que tenho
criado tantos outros espetáculos, quando fazemos “A raiva”, o público
experimenta uma grande alegria.
Quando estava em Roma
fazendo esse espetáculo, a cidade de Pasolini, comecei a sentir um estranho
formigamento nas mãos e nas pernas. Rapidamente transformou-se em ardores. À
procura do novo mal, rejeitei todo tipo de terapia. Cada um tinha a sua,
todos falavam coisas diferentes. Lembro-me uma vez em Milano, um certo
doutor Lee. Me faz deitar sobre uma prancha, me dá um golpe seco nas costas
e me apresenta uma conta de duzentas mil liras. Tempo da intervenção: 10
segundos.
Ardores, Daimoku,
peregrinação pelos hospitais, até que me fazem uma tomografia na França, que
sem nenhuma dúvida colocava em evidência uma Mielites da medula espinal, uma
infecção causada pela existência do HIV. Terrível, mas ao menos concreto. Me
recuperaram em Gênova numa sala de neurologia. Decidi fazer entre sete e dez
horas de Daimoku por dia, durante alguns meses. Foi o período mais
inacreditável, louco e feliz da minha vida. Em certos momentos experimentava
uma alegria tão grande que me faltava o incentivo, as palavras, os
pensamentos. Mas depois voltava o medo da morte. Sentia indistintamente as
pernas que ardiam, o corpo e a medula invadida com esse vírus, que me
destruía fazia 10 anos. Foi como entrar no túnel mais profundo e escuro. Às
vezes tinha uma grandíssima consciência de mim, da natureza profunda da
vida, da morte, do universo. Jamais deixei de atuar, ainda que as dores nas
pernas eram fortíssimas, mesmo assim continuava trabalhando. Dava ao público
minha luta, minha dor, minha busca da alegria. Dava o que era.
Após alguns meses de
tanto Daimoku, passei por outra tomografia de controle. Sempre tive medo de
entrar nesse cilindro que faz sentir claustrofobia. Curiosamente essa vez
fui com alegria. Permaneci sereno, inclusive feliz. Sentia alegria e
felicidade lá dentro. Foi para mim uma grande experiência de fé. Quando saí,
os médicos me olhavam alucinados. Nos exames, via-se que na medula, lá onde
antes avançava o vírus, só existia uma cicatriz. Tudo tinha retrocedido.
Quase não podiam acreditar que tivesse existido uma Mielites.
Estava tão sereno, tão
pouco preocupado, que compreendi que também eu tinha vivido, na primeira
pessoa, uma dessas histórias que às vezes se lêem no Nuovo Rinascimento.
Aquelas que jamais podemos pensar que seremos capazes de viver. Poucos dias
depois, enquanto contava numa reunião esta experiência, comecei a ter lapsos
mentais e não lembrava nada. Eram os primeiros sintomas do que apareceria
depois. Depressão total. Ruptura física e mental. Sentava-me num sofá, sem
ter forças para fazer nada. Quando tocava o telefone sentia uma angústia
enorme. Não podia sequer preparar um chá. Minha relação afetiva, o teatro,
os amigos, a prática, tudo tinha se destruído, tudo tinha se derrubado.
Durante a noite não podia dormir. Estava aterrorizado.
No verão de 96, em
Porretta, falei com Mitsuhiro Kaneda (na época Diretor Geral da SGI-Itália).
Me disse: “Você se esforçou muito e durante muito tempo. Agora está
destruído. Descanse durante um tempo. Diminua um pouco o Daimoku, e quando
puder faça o Gongyo. E acima de tudo, durma, durma muitíssimo”. E nesse
Daimoku que fazia estava toda minha vida. Comecei inclusive uma terapia
antidepressiva, com uma psiquiatra. Tinha medo de ter enlouquecido, de ter
perdido o controle de minha mente. Aí cheguei ao fundo mais negro da
tormenta.
Lembro-me uma vez em Gênova, ao tentar descer umas escadas não consegui
fazê-lo. Sentei e esperei, tinha a barba crescida, estava magérrimo. Nesse
momento passou um rapaz, me viu e disse: “Você me deu tanta coragem, quando
contou sua experiência...”. Nesse momento pensei na boa sorte que tinha de
possuir um grande grupo de amigos e a pessoa que tinha escolhido como
mestre, graças aos quais tudo isso era possível.
A partir daí “algo”
acontece, não posso dizer o quê. Acontece tudo. Nos primeiros meses de 97
devia dar um seminário para atores no manicômio de Aversa. Não queria ir,
mas me acompanharam. Não só trabalhava no manicômio, como também dormia com
os loucos. Lembro-me que tinham me dito: “Ainda você pode não saber como,
mas de alguma maneira o Gohonzon te protegerá, te ajudará a sair adiante”.
Um homenzinho microcéfalo, de sessenta anos, surdo-mudo, encerrado ali fazia
45 anos, vinha espionar quando dava os cursos. Perguntei-lhe se queria fazer
algo conosco. Movimentava-se com uma graça belíssima. Não sei como acontece,
mas comecei a esforçar-me para fazer algo por aquele fantástico homenzinho.
E assim, pouco a pouco, comecei a pôr pra fora minha energia para poder
fazê-lo sair de lá, do manicômio, imaginando-me que poderia vir a trabalhar
comigo. Ele, cada manhã, esperava ansiosamente na frente da porta do
manicômio, que o fossemos buscar para levá-lo a Nápoles para ver o novo
trabalho que estava nascendo nesses dias. Uma nova criação na qual
trabalhávamos juntos, atores e “loucos”.
Não me interessava fazer
um espetáculo “bonito”, tampouco me importava nada a crítica, o consenso.
Somente me importava voltar a viver. Junto com meus companheiros, antigos e
recentes fizemos uma viagem fantástica e é disso que quero lhes falar. O
dinheiro para a produção era pouquíssimo, cada um devia dar um jeito como
podia. Quanto Daimoku recitamos juntos. Assim nasce o espetáculo “Barboni”
(Mendigos). Dessa maneira, Bobo, o homenzinho, sai do manicômio.
Quando passei o portão,
caminhando junto com ele, vi como observava encantado todas as coisas que
nunca tinha visto, os cartazes publicitários, as pessoas...
Tinha começado a viver
aos sessenta anos, e eu com ele. A partir desse momento comecei a abrir-me
cada vez mais às pessoas, às suas vidas e suas feridas. Esquecendo minha dor
e meus problemas, pouco a pouco tenho começado a curar-me, a reencontrar o
equilíbrio, a força. Meu corpo acreditou em mim e seguiu-me.
O vírus tornou-se
negativo, Bobo vive faz três anos na minha casa e se instalou na sala do
Gohonzon.
Muitas críticas têm dito
que “Barboni” tem aberto uma nova maneira de fazer teatro. O espetáculo
recebeu muitos agradecimentos de parte da crítica por “uma busca conduzida
entre arte e vida”. Em todo caso, estamos dando a volta ao mundo. Assim, meu
velho sonho de criança, de fugir do povoado em busca de espaço e liberdade
tornou-se realidade. Depois de “Barboni” temos criado “Guerra”, um
espetáculo onde encontram-se alguns trechos do Rissho Ankoku Ron. E depois
“Êxodo” que atravessa o mundo das diferenças culturais.
Na minha companhia há
hoje tantas pessoas diferentes: Bobo, Armando, Puma, Gianluca, uma criança
com síndrome de down, Nelson, um mendigo, Fadel, um fugitivo do Saara, e os
companheiros de tudo e de sempre, Pepe, Gustavo, Simone, Elena, Lucia e
Tomaso.
No meu butsudan
(oratório) há uma foto do presidente Ikeda. Está dançando com um leque.
Nestes anos de grande dor, olhava seus olhos, lia e relia suas palavras:
“Dentro de nós estamos construindo uma felicidade que não é influenciada
pelas mutações externas. Rompendo os abismos da angústia, no centro de nosso
ser existirá sempre esse tesouro indestrutível. Então podemos participar
plenamente das alegrias e dos sofrimentos do mundo sem sermos dirigidos, com
a força de superar a adversidade, sem ser esmagados e de gozar da
prosperidade sem ser corruptos”.
Em suas palavras
encontram-se energia e fé para continuar lutando, para não deixar-se morrer.
E hoje posso dizer que agradeço aquele sofrimento. Me fez crescer, me
permitiu abrir-me à vida.
Tradução ao português:
Ariel Ricci
aricci@estadao.com.br
Revisão: Marly Contesini
contesini@estadao.com.br