O ensino de Sunyata: A não substancialidade
Superar o egoísmo ajuda a encontrar um mundo de novas possibilidades no interior


Têm visto os desenhos que formam as dunas? Dependendo do tamanho e a forma dos grãos de areia, a direção dos ventos e as características da superfície do terreno, as areias movediças podem formar uma miríade de desenhos das dunas. Os desenhos de escalas ou ondulações sempre estão mudando. Assim como esses desenhos de areia sempre mutantes, tudo o que nos rodeia (nós incluídos) está mudando constantemente. E como as dunas, a maneira como mudam as coisas ou as pessoas estão em função da sua relação com seu meio ambiente.

Nagarjuna, o mestre budista que, segundo acredita-se, viveu na Índia no final do segundo século e começo do terceiro, expôs o ensino de sunyata (ku, em japonês), que é traduzido de diversas maneiras como não substancialidade, vazio ou vacuidade. Ele desenvolveu o conceito de não substancialidade a partir do princípio da origem dependente (Pratityasamutpada, em sânscrito; engi, em japonês) de Sakyamuni.

Nagarjuna afirmava que dado que tudo surge e continua existindo em virtude da sua relação com outros fenômenos (ou seja, pela origem dependente), não tem, em absoluto, substância própria fixa ou independente (quer dizer, é não substancial). Visto sob esta perspectiva, não há nada que não possa ser mudado. Nada existe totalmente por si mesmo, e nenhuma forma é absoluta e imutável. O universo, então, está cheio de novas situações a cada momento.

Esta natureza aberta do universo também se aplica aos seres humanos. Nossa vida está cheia de novas possibilidades para o futuro. Tudo depende da maneira como nos enxergamos – o quanto reconhecemos nossas possibilidades - e que tipo de relações criamos com nosso ambiente.

De acordo com a perspectiva da não substancialidade, tudo muda não só na sua aparência ou forma mas também na sua natureza ou significado. Uma balsa, por exemplo, pode ser útil para que um viajante cruze um rio. Mas seria tolice que ele transportasse a balsa uma longa distância depois de cruzar o rio. A balsa, então, converte-se numa pesada carga, um obstáculo para sua viagem. Neste sentido, o conceito da não substancialidade sugere que é tolice que baseemos nossa vida em coisas que possuímos, como a riqueza ou a posição, e nos apeguemos a elas. Como a balsa, essas coisas só têm um valor imediato, e apegar-se a elas pode até converter-se numa carga na nossa viagem para a perfeição. E do ponto de vista da eternidade, não são nada.

O importante é que geremos uma relação positiva com nosso ambiente sempre cambiante a todo momento e, dessa maneira, criemos valor.
Se baseamos nossa vida na crença de que o dinheiro ou o status social têm um valor e significado permanentes, mais tarde ou mais cedo nossas expectativas se verão miseravelmente traídas. Por exemplo, estaríamos colocando-nos a nós mesmos em perigo se nos aferramos a um punhado de dólares, em vez de uma cantimplora com água, quando atravessamos um deserto. Se nos apegamos à riqueza material ignorando nosso bem-estar espiritual, eventualmente também nos tornaremos miseráveis. Ao mesmo tempo, se desenvolvemos a capacidade para utilizar a riqueza material para apoiar nossa felicidade e beneficiar os outros, sem recusá-la nem escravizar-nos a ela, nossa vida pode ver-se mais realizada.

O conceito da não substancialidade de Nagarjuna mostra que não existe um valor absoluto - bom ou mau - designado às coisas ou eventos das nossas vidas. Seus significados dependem, essencialmente, do que fazemos com eles. Sem importar o doloroso ou desafortunado que possa ser um evento que possamos encontrar, ainda podemos criar dele um significado positivo, dependendo de como o vemos e o quê fazemos com ele. Nossa visão e as ações resultantes, porém, estão determinadas não simplesmente pela nossa compreensão intelectual e sim pela nossa consciência essencial ou o estado do nosso ser mais profundo. É aqui onde nossa prática do Budismo pode efetuar uma mudança positiva.

O conceito da não substancialidade também nos ajuda a descobrir dentro de nós um mundo de novas possibilidades. As vezes limitamos nosso potencial, pensando que continuaremos sendo iguais para sempre. "Eu nasci assim. Nunca mudarei". Como ilustra o conceito da não substancialidade, porém, nada é exatamente igual de um instante a outro. Se bem as coisas podem ser piores, também podem melhorar. Portanto, melhorar nossa vida é possível, e sempre seremos capazes de fazê-lo. Neste sentido, estabelecer limitações equivale a viver sob a ilusão de que a imagem que temos de nós mesmos neste momento, é uma realidade fixa. Na realidade, é não substancial e mutável.

Provavelmente o significado mais importante do ensino da não substancialidade é que não existimos totalmente por nossa conta. O significado da nossa vida - e da nossa felicidade - surge através da inter-conexão com os que nos rodeiam, com a comunidade e o mundo no qual vivemos. Uma analogia que utiliza-se para descrever este principio no Budismo, é a de dois fardos de cana que permanecem parados enquanto cada um estiver apoiando-se no outro. O significado é que não existe uma distinção fundamental entre nossa felicidade e a dos outros. Cair na ilusão de que somos independentes dos outros é afastar-nos do mundo que nos rodeia. Este tipo de egoísmo resulta contraproducente. O conceito da não substancialidade ensina que todas as coisas, incluindo nossas vidas, existem somente enquanto estão no contexto das suas relações com outros fenômenos. Nada tem uma substância independente por si mesmo. Por exemplo, um ser humano no vazio do espaço rapidamente se transformará numa massa sem vida  queimado como carvão por um lado, devido à ação direta dos raios do sol, e congelado pelo outro. Sem ar nem água nem outras formas de vida que lhe brindem nutrientes, um ser humano morrerá. E no nosso mundo moderno, poucos de nós poderíamos sobreviver facilmente sem o sistema de comércio que nos rodeia, que inclui o transporte, a distribuição de alimentos, etc. Muitas pessoas estão envolvidas nestes esforços e todos dependemos delas. Não reconhecer e apreciar isto devido à ilusão da identidade independente originará desequilíbrio e infelicidade.

Isolados, nossa vida perde significado. Mas, dependendo de como nos relacionamos com os outros e com nosso ambiente, podemos realizar o infinito potencial que possuímos e compartilhar nosso próprio valor com o mundo que nos rodeia. Neste sentido, os mais desafortunados são aqueles que se isolam na prisão do seu próprio egocentrismo e trancam a porta por dentro insistindo em que suas vidas são fundamentalmente separadas. Numa irônica inversão da sua verdadeira intenção, os que procuram um valor absoluto na sua própria existência, ignorando a felicidade dos outros estão, na realidade, esvaziando sua vida de significado e substância. Com a ausência dessas relações, tudo o que fica é "não substancialidade" ou "vazio".

Em última análise, o conceito da não substancialidade é um ensino através do qual despertamos nossa benevolência e transcendemos nosso eu egoísta, de modo que podemos envolver-nos ativamente com os outros. Quando vemos a felicidade dos outros como nossa e lhes estendemos uma genuína atenção, nossa vida se transforma do "vazio" à "substância". A este respeito, Nitiren Daishonin diz:

"Viver baseado na não substancialidade é praticar com dedicação desinteressada" (Gosho Zenshu, pág. 737)(NT: tradução não oficial. Esse gosho ainda não foi traduzido ao português). Como o explica sucintamente Daishonin aqui, quando vivemos pela felicidade dos outros com dedicação desinteressada, estamos pondo em ação o ensino da não substancialidade. Como o explica o notável estudioso budista Hajime Nakamura, o próprio Nagarjuna apreciou e sustentou os valores da "gratidão" e "o ideal do bodhisattva". Ele viu a importância de realizar a inter-conexão de todas as vidas assim como manifestar gratidão e benevolência na ação altruísta. O conceito da não substancialidade sugere que o desinteresse pode ser o caminho mais curto para uma significativa individualidade.


Por Shin Yatomi, editor associado
Baseado no livro Yasashii Kyogaku (Estudo fácil), Tokyo: Seikyo Press
Publicado na revista Living Buddhism (SGI-USA) de 08.99, pág. 8
Copyright © 2002, Soka Gakkai Internacional, Todos los Derechos Reservados.
Fonte: www.sgi.org/spanish/budismo/bactual/Actual06.html


Tradução: Ariel Ricci aricci@estadao.com.br
Revisão: Marly Contesini contesini@estadao.com.br


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